sábado, junho 30

Fronteiras

Linhas imaginárias, ficções políticas, fios enredados de audácia, avareza, ambição, traços de régua, devaneios humanos, caprichos da natureza. As fronteiras são símbolos de separação, de afastamento, de definição do eu e do outro, do nós e do eles. Representam o sentimento infantil de posse elevado ao expoente de milhares de quilómetros quadrados de terra delimitados por convenções geométricas do que é "meu". O ser humano atinge a auto-consciência do seu ego por volta dos 16 meses. O estado moderno atingiu igual patamar de desenvolvimento por alturas do tratado de Westfália em 1648. Já era altura de ter crescido um pouco e alguns esforços se vão fazendo, como a União Europeia, por exemplo. Mas a verdade é que continuamos todos maravilhados por fronteiras, por atravessá-las, por vê-las como as vemos nas páginas dos atlas, em sombreado cor-de-rosa, por sobre montanhas e vales, cruzando florestas e lagos, transformando o planeta num enorme puzzle de peças tão irregulares quanto fascinantes.

Eu, confesso, não sou excepção, nem expoente de maturidade neste portanto. Aquele que nunca passou uma noitada a jogar ao Risco que atire a primeira pedra. E se uma fronteira entre dois países pode ter muito interesse, uma tríplice-fronteira tem muito mais. Até agora, conheci dois desses locais.

Em Novembro de 2004, estive na ponta Noroeste da Jordânia, após visitar umas ruínas romanas próximas de Irbid. Entre colunas dóricas edificadas no cume de um promontório, avistava-se Israel e o Mar da Galileia, a poente, os Montes Golã, a norte, a Síria, a nascente. Impressionava a calma aparente daquilo tudo sob a luz fugitiva do crepúsculo. Mas com esforço conseguiamos adivinhar uma guarita militar síria, guardada, um pouco acima, pelos olhos brilhantes de uma cabra-montês. As edificações milenares feitas em pedaços atrás de mim pareciam proclamar a vã glória da guerra estúpida que se desenrola há décadas naqueles montes. Apeteceu-me gritar dali donde estava isso mesmo. Para o vazio, para o breu da noite que entretanto já caíra. Calei-me. Em alternativa, aproveitei o escuro para mandar ali mesmo uma grande mijada, pois já estava mesmo precisado.


Vem tudo isto a propósito da foto ao lado. Foi tirada o mês passado. Aí vemos o chamado “Encontro das Águas”. O Riu Iguaçu oferece o seu caudal ao grande Paraná, que vem vagaroso, ainda represado pela grande Barragem de Itaipú, uns quantos quilómetros a montante. Esta é (até à inauguração da Barragem das Três Gargantas na China) a maior represa hidroeléctrica do mundo. Mais para sul, após a junção do Rio Uruguai e ainda outros, estas águas formarão o enorme Rio da Prata, entre Buenos Aires e Montevideu.

Ora bem, voltando à foto: eu estou no Brasil, em frente está a Argentina e à direita, na outra margem do Paraná, está o Paraguai. A mata é densa em todas as partes. Estes são os cenários das loucas investidas dos jesuítas pela selva adentro para formar missões e converter tupis e guaranis. O rio que vem da esquerda é o Iguaçu e as suas águas são notoriamente mais vermelhas que as do Paraná pois deram há cerca de uma hora atrás o grande salto das Cataratas. Foram 70 metros de queda livre e na revolução que se seguiu, na erosão do solo ferruginoso, viraram aquele castanho vivo. O nível dos rios estava relativamente alto pois tinha chovido no dia anterior. Mas por vezes o caudal sobe de tal maneira que inunda completamente os andares inferiores da construção circular que se vê na foto. No último andar, em dias de Verão, costumam reunir-se os líderes governamentais do Mercosul para cerimónias oficias. Simbólico? Claro, como todas as fronteiras. Mas, enquanto tal, não conheci outras tão visíveis, tão materiais, tão bem delineadas quanto estas.

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