quarta-feira, março 8

LES

Ontem à noite, na 2:, passou um excelente documentário da BBC sobre montagem cinematográfica chamado The Cutting Edge. A dado momento, Martin Scorcese diz o seguinte sobre o seu primeiro visionamento d'O Acossado (sempre achei piada a esta tradução de À bout de souffle), a sua revolucionária técnica de montagem, os célebres jump cuts de Jean-Luc Godard: "I didn't understand a thing about what I was seeing. It was too sophisticated. Too hip. I'm from the Lower East Side...".

Eu também. No que sou de Nova Iorque, sou do LES (acrónimo mais estiloso é difícil). Foi ai que vivi, during MY days... Mais precisamente na esquina da Rivington com a Clinton, logo a norte da Delancey, a rua onde desemboca a Williamsburg Bridge do lado de Manhattan, vinda do bairro com o mesmo nome em Brooklyn.



Há uma cena do French Connection em que, às sete da manhã, Popeye Doyle (Gene Hackman) e Russo fazem uma espera à porta do Ratner's Restaurante, 138 Delancey Street, à entrada para a ponte. O mesmo estabelecimento foi um dia o covil de renomados criminosos como Meyer Lansky e Bugsy Siegel. Hoje é um Burger King...

O bairro sempre foi uma misturada. Outrora de italianos e irlandeses, sobretudo. Em certa rua, sob uma passagem elevada e hoje desactivada do comboio, mulheres da vida de uma e outra comunidade ofereciam, em lados opostos da via, os seus préstimos aos outros homens, que não os seus, para nunca serem vistas por familiares e amigos que também faziam por ignorar que a Giuseppa e a Siobhan vendiam os corpos para alimentar as bocas famintas da respectiva e igualmente numerosa prole. A miséria como menor denominador comum.

Depois vieram os judeus. Muitos. Milhões. Tornaram o LES o sítio do globo com mais sinagogas por metro quadrado. Até aos dias de hoje, quando após o êxodo de sefarditas e askhenazi para o outro lado da ponte, para Brooklyn, o bairro é dominado por dominicanos, chineses, porto-riquenhos, haitianos, artistas falidos, músicos aspirantes ou, a título excepcional, consagrados (soube há pouco que o Moby habita a mesma Rivington Street em que morei).

Com a abertura constante de galerias de arte instantâneas, cafés artie, lojas de roupa inexistente, restaurantes vegetarianos, à la mode, muito bons ou simplesmente pretensiosos e estupidamente caros ao lado da cucaracha dominicana que vende sopa de pollo a 1 dólar, a transformação do bairro foi e ainda é, suponho, um devir efervescente de criatividade a que deu muito gozo assistir a partir do 5º andar de um típico walk up (sem elevador) oitocentista.

Por tudo isto, compreende-se porque viver aqui nunca seria a primeira opção do Vasco, a quem aproveito para humilde e anonimamente felicitar pelo aniversário do consumado blogue. Arrisco que ele, como eu, preferiria as partes baixas da ilha. A atmosfera no Upper East Side, por definição e oposição cartesiana, a antítese do LES, sempre me fez lembrar o auditório da Gulbenkian em dia de concerto às sete horas com seus magotes de gerontes perladas de presunção, sonolência e mau gosto. Tudo bem que lá se encontram Guggenheims, Metropolitans, afins e tudo o mais... Mas eu troco isso tudo por ter o Tonic e o Living Room, inacreditáveis bares de música ao vivo pela familiaridade do ambiente e pela enormidade de quem lá toca numa base regular, mesmo ao lado de casa. Any day.

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