Por vezes, nas nossas vidas cada vez mais complexas, esquecemo-nos de apreciar devidamente a simplicidade. O excesso de informação com que somos diariamente bombardeados subjuga-nos e impede-nos de apreciar as coisas na sua forma primária, o simples, que tantas vezes é sinónimo de belo.
Hoje fui finalmente ver o filme que mais aguardava nos últimos tempos, Alice, e posso-vos garantir que as minhas expectativas não saíram defraudadas. Como filme, é notável, e como primeira obra, então, é verdadeiramente impressionante. Marco Martins revela possuir mão de mestre e entrou directamente para a minha galeria de realizadores a seguir com atenção. A sobriedade com que dirige o filme é incomum para um realizador novato. Não há aqui planos marados, ângulos cool ou montagem frenética. Há apenas um momento, muito bom, em que experimenta com o som, mas perfeitamente enquadrado com o contexto.
Alice é a simplicidade no seu estado mais puro. Não se pode sequer dizer que há uma história, apenas uma ideia simples – um pai, uma mãe, uma filha que desapareceu há seis meses – e limita-se a criar um ambiente para colorir essa ideia. Só. Mas esse “só” tem mais substância do que grande parte do cinema que se vai fazendo. E essa simplicidade é contada com a lentidão que se impõe, porque só a ela é capaz de nos fazer reflectir.
O ambiente de Alice é recriado, não inocentemente, pela cor azul, porque retrata na perfeição a tristeza mais avassaladora, o desespero mais pavoroso, a miséria mais medonha, e pela música pungente de Bernardo Sassetti. Não há que enganar: aqui, a esperança não tem lugar. Mesmo quando vemos Mário, o pai (numa brilhante interpretação de Nuno Lopes, aqui a demonstrar que é um grande actor dramático), na rotina que para si estabeleceu de revisitar os locais que percorreu no fatídico dia do desaparecimento, adivinhamos que ela será infrutífera, que ele sabe que se está a tentar enganar a si próprio, que é essa obsessão que o leva a querer continuar a viver.
A obsessão torna-se no motor do filme, construindo-se em volta do vazio que a justifica, dando-lhe forma até, mas que jamais será capaz de preencher. É doloroso assistir ao pai que coloca câmaras pela cidade (e Lisboa nunca foi filmada desta maneira) e posteriormente visiona as gravações, à mãe que parece não viver mas apenas ter uma existência sonâmbula, aos amigos que parecem fazer parte de uma existência passada. Sobretudo, é doloroso assistir à maneira como a obsessão que mantém Mário vivo é também o que acaba por lhe tolher o espírito.
Em Alice não há mais que uma personagem, aquela que Mário representa todas as noites no teatro que é o seu mister e que é tudo aquilo ele nunca mais será. De resto, existem apenas pessoas, todas elas demonstrando a sua essência, a nudez da sua alma. Não há lugar para representações no vazio e na dor.
Alice é irremediavelmente triste, e no entanto é belo, muito belo. Porque é simples.
Para acabar com uma nota mais positiva, porque também não quero que vão a seguir atirar-se da janela mais próxima, uma das personagens ostenta um dos melhores bigodes do cinema português. E faz parte da nossa geração.
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