A interacção Figueira-Coimbra é uma questão que não vem de agora, e constitui um microcosmos de porrada e pancadaria tão ricos que poderiam perfeitamente ter inspirado versões nacionais de um Outsiders ou de um Rumble Fish. Apesar de ser uma história antiga está relativamente bem definida no tempo. Diria que é o período entre o início dos anos 80 e o primeiro mandato do Santana Lopes, e ocorria sobretudo em dois momentos. A Queima das Fitas, em que íamos lá nós, e toda a época balnear em que vinham cá os gajos.
Que tínhamos então nestes conturbados oitentas? De um lado, Coimbra, a cidade universitária, cheia de gente de todo o país, durante todo o ano, pessoas que na verdade nada tinham a ver com estas guerras. Constituíam no entanto um trunfo para os autóctones. Eram ainda os gajos que tinham as livrarias, as lojas de discos, as lojas de roupa e História, muita História. Os representantes mais típicos da fauna coimbrã eram os rockabillies, gente que de facto se vestia e se penteava tal qual a imaginada América dos anos 50. Se toda esta perspectiva cosmopolita era o troféu, a verdade é que pouco mais deles se utilizava do que as lojas de roupa. E talvez algumas de discos, no Natal e nos aniversários. Nas bandas não havia meninos! Era tudo punk e rockabilly. Alguns dos Tati e dos Belle Chase Hotel são gente desta escola (sim, andaram de poupa no ar e apliques metálicos nos sapatos). Coimbra tinha ainda a RUC, fabulosa rádio independente, e que se ouvia também na Figueira. A boa cultura musical das pessoas de ambas as cidades deve-se às audições da RUC. A grande discoteca era a States, talvez o maior bar de rock que alguma vez tivémos em todo o país, hoje casa de striptease.
A Figueira era, muito mais do que agora, uma terra de pescadores, pólo turístico por excelência de espanhóis (a praia mais próxima de Madrid) e de pessoas de Coimbra. Na altura, mais ninguém, senão estes, povoava as noites de Verão da Figueira. Os orgulhos locais eram praticamente só o Mar e o Verão e dava ideia que eram mais do que suficiente. A fauna era dominada por dois tipos muito específicos: Surfistas e Basquetebolistas. Os surfistas eram todos filhos de pescadores. Daí que não tenha havido nenhuma grande glória do surf mundial oriunda da Figueira. Quando terminavam o 11º ano entravam na Forpescas e seguiam a carreira familiar. Do básquete, aí sim, saíram alguns nomes cujo objectivo principal era chegar ao Benfica e à Selecção, o que foi aqui e ali conseguido. Destaca-se o Lita, jogador de grande classe que chegou ao cinco inicial do Benfica de Mário Palma e que por, dizia-se, ser calão, passou ao lado de uma carreira fulgurante. As bandas, poucas que havia, eram uma imitação sofrível de um indie britânico daquela altura. Havia muitas pessoas vestidas como o Robert Smith, ouvia-se Smiths e Joy Division, mas ninguém sabia muito bem porquê. Havia duas discotecas de grande nome, a saber, o Bergantim e o Pessidónio. O Bergantim ainda hoje existe e ganha o prémio de resistência, a dar-lhe há mais de trinta anos.
Chegava-se a Maio e a Figueira deslocava-se por uma semana a Coimbra. Começava aqui a época de porrada. Era um momento aguardado com excitação por todos e todos tinham a certeza que iria haver merda. E havia sempre. Normalmente em frente ao palco, aproveitando o facto de estar tudo a assistir a um concerto de Iggy Pop ou Gene Loves Jezebel, o primeiro empurrão despoletava então um abrir no público em forma de arena e começava o fight. Uma das coisas que me intrigava quando pensava em batalhas na idade média, era como se conseguiam os soldados distinguir uns aos outros. Ali era igual, dezenas de gajos ao soco e nunca havia fogo amigável. Cada murro atingia cuidadosamente e só o adversário.
A partir de Julho vinha Coimbra até á Figueira. Além dos tais espanhóis e de algumas pessoas do Norte da Europa a terra ficava cheia de malta de Coimbra. Isto já era uma instituição de tal modo enraízada que ainda hoje a expressão Coimbra C é bastante familiar (piadola apenas ao alcance de quem anda ou tenha andado bastante de comboio). A porrada continuava agora, à porta dos bares, dentro de discotecas, junto à praia, sendo que, uma vez por ano havia uma noite em que a coisa corria mesmo mal, de forma mais ou menos combinada, para resolver aquilo de uma vez. Se o denominador comum, quer na Queima quer no Verão, era o copo, agora acrescentava-se ainda o factor gajas. Ou seja, a porrada nunca partia de um mosh maldoso, mas sim de uma espanhola que nos virava a cabeça a todos e que no final acabava disputada sempre, por um representante de cada um dos lados, o que, obviamente dava merda.
Hoje passo lá muito menos tempo, mas tenho ideia que esta tradição morreu. O ponto de viragem, julgo, foi o mandato do Santana Lopes na Figueira. A estratégia agressiva de mediatização da Figueira funcionou, e a população estival de Coimbra na Figueira diluiu-se e, na verdade, perdemos o complexo de inferioridade que tínhamos em relação aos nossos vizinhos universitários. Ou isso ou a culpa era da nossa geração, e, tendo crescido e saído de lá, a coisa andou e instalou-se a paz.
Isto para introduzir o tal jogo amigável da Naval - Académica. Que ficou um a zero, não nos esqueçamos. Não consigo deixar de sentir um pequeno brilhozinho nos olhos quando leio uma notícia destas, uma nostalgia que invade. Ainda para mais porque a porrada nunca tinha sido motivada verdadeiramente por futebol. Houve apenas um período curto em que a Naval e a União de Coimbra se econtraram, uma ou duas épocas, e que também não foi bonito.
Na verdade, gostamos muito uns dos outros e, juntos, temos um certo desprezo pedante pelo resto do país (a ausência de sotaque, por exemplo). Mas quais, macleods achamos que só pode haver um e, olhem, porrada. É a primeira vez que Naval e Académica estão na primeira divisão juntas. Promete.
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