sexta-feira, agosto 4

Ora tente lá dizer "Electric Ascension" sem parecer que é das Beiras.

Uma das mais eficazes maneiras de iniciação no jazz é ouvi-lo cronologicamente e devagar, um estilo de cada vez e um após o outro. É especialmente interessante que quase toda a gente (excepto os críticos de música) chega a um ponto e afirma 'aqui é o meu limite' e pára por ali. Há gente exagerada que pára nos anos 30 e há gente exagerada que nunca pára. No meu caso o free jazz foi um passo demasiado grande para o que eu consigo digerir. Isto nos anos 60 (a música, não eu). Felizmente o Coltrane achou por bem voltar a trazer algumas regras para o free e caminhou-se para lugares mais audíveis novamente, mas como todos os grandes movimentos de ruptura, o free criou um ponto de não retorno e a partir daí a minha caminhada cronológica fez-se a um passo muito, muito mais lento.

Para meu azar, o momento que se vive agora é precisamente o de reinvenção do free, por mérito sobretudo de músicos europeus. O centro do jazz, hoje, é aqui, dizem. Tentei mais de uma vez seguir conselhos e ouvir os nomes actuais mais relevantes mas só um ou dois conseguiram a proeza de passar à segunda audição. E passei a ser oficialmente um careta. Ontem fui pela primeira vez assistir a um concerto do Jazz em Agosto na Gulbenkian para ver os ROVA::Orkestrova. Os ROVA::Orkestrova (muito hei-de escrever este nome ao longo do post) são uma orquestra muito particular que arranjou electricamente o álbum Ascension de Coltrane. A formação com que ele o gravou é já de si curiosa: Cinco saxofones, dois trompetes, dois contrabaixos, piano e bateria. Nunca o ouvi. Este Electric Ascension é tocado por uma orquestra, com quatro saxofones (os ROVA), guitarra, baixo, violinos, pratos (de DJ), bateria, electrónicas diversas, acordeão. Enfim eram doze pessoas.

Temi o pior, reconheço. Precisamente porque conhecia o Electric Ascension dos ROVA::Orkestrova, temia o pior. O meu problema com o free jazz é só existir caos. Eu gosto muito do caos na música, gosto de barulho e distorção, atonalidade, e tudo. Mas tem que ser um caos que caminhe nalguma direcção e que seja resolvido. Os Sonic Youth fazem muito bem isto, para dar um exemplo apenas. Só caos parece-me um exagero e, mais grave, não compreendo. Reconheço que o concerto do ROVA::Orkestrova foi muito mais perceptível do que eu pensava. Está provado que é conveniente ver o jazz. Como todas as big bands esta não toca jazz, mas antes festeja-o. Acontece desde os tempos das primeiras orquestras de Duke Ellington e esta não me parece fugir a essa regra. O jazz para o ser tem que ter a flexibilidade de um grupo pequeno de quatro ou cinco músicos. E foi muito bem celebrado o John Coltrane na noite de ontem, com uma peça só de cerca de hora e meia, que tinha a particularidade de, entre os temas, apresentar, não solos individuais como é habitual, mas improvisos de pequenos combos de dois ou três músicos a que se juntariam gradualmente os restantes até o regresso ao tema. Estes pequenos combos permitiam-se a momentos, esses sim de jazz e não da sua celebração, francamente bons. Terei que excluir talvez o solo de estática produzido pelo tipo da electrónica. Na verdade não o achei bom nem mau, mas sejamos sérios. Era estática. Pareceu-me ainda assim aquele que mais divertiu os restantes músicos.

Terminou com uma peça curta e com uma estrutura muito mais confortável, a servir de digestivo àquela hora e meia de violência. Ainda assim houve uma parcela considerável da plateia que não quis arriscar e abandonou rapidamente o recinto, temendo nova hora e meia de furacões e tempestades. Fizeram mal, porque os ROVA::Orkestrova são sábios e saímos (os que ficaram) muito mais aconchegados com aquele bocadinho de oito minutos.

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